sexta-feira, 22 de agosto de 2008

no meio do nada

Difícil manter os olhos abertos diante do cenário monotamente conhecido. A janela do autocarro emoldurava uma paisagem cinza e molhada. As varetas já reumáticas do limpador do párabrisas chiavam um protestozinho ritmado. E a voz: moço! moço! para que lado este ônibus está indo? Pelo jeito o motorista também vinha lutando para manter os olhos abertos, custou a atinar com a pergunta. Olho para o lado e vejo um pescoço jovem e branco, tatuado com o que parece ser um sol azul, de carta de tarot, aparecendo pela metade sob a gola do blusão pesado. Sabe? um tipo de sol gordinho, com bochechas e raios bonachões a espalhar simpatia. Cabelo curto, brinco de pedrinha branca brilhante na orelha direita. Será que é único ou tem um par correspondente na outra orelha? Também eu custo a acordar e atinar com a pergunta do rapaz. Ou será uma mocinha? Difícil ver sob tanta roupa de inverno, a voz é rouca.. Finalmente o motorista consulta o cobrador pelo espelho: ouvi mesmo isto? a meio caminho do destino alguém tem dúvida? E a moça - sim, é uma mocinha! - insiste: para que lado estamos indo? O motorista, vencido, afinal abre a boca: Pelotas.
Ela volta-se e diz: Dormimos! e agora? e de novo ao motorista: a gente ia só até ao trevo, queremos ir para Porto Alegre. Onde é isto aqui? É uma cidade? Dá para voltar?
Nova troca de olhares entre o motorista e o cobrador. Afinal são duas mocinhas. O que é mesmo uma mocinha? uma mulher jovem? ingênua?
Resolvem parar logo na próxima parada para que elas, já quase em Pelotas, peguem transporte para o lado oposto. Mas passa mesmo ônibus aqui? parece o meio do nada. Aqui é cidade? Parece não ter percebido que estavam num ônibus que passava mesmo ali naquele pedaço do nada. O ônibus pára. Descem as meninas. A outra era miúda, cabelos longos, presos, tingidos, com as raizes escuras a gritarem afogadas em cajú.
O ônibus arranca em meio ao nada cinza e molhado, e lá ficam elas à berma da estrada. A miúda sentada no abrigo, pernas cruzadas, com um chapéu de chuva nas mãos a rir. A outra a saltitar em volta dela, gesticulando seus protestos, planos, argumentos.
Alguns quilômetros mais tarde fico matutando se imaginei aquela cena bizarra. Vai ver foi uma miragem causada pela monotonia...uma alucinação!
Mas não, aquele sol azul e gordinho encimado pela Vésper tão brilhante existiu mesmo.Talvez tenha surgido para impedir que o motorista sucumbisse ao compasso da chuva. Ou para nos fazer perceber que todo caminho, por mais conhecido e batido que seja, reserva sempre uma surpresa na próxima curva ou no próximo abrigo de ônibus.
Por que tenho sempre que arranjar essas explicações esotéricas? ai que este ônibus não chega nunca! quero meu chocolate quente!

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