quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ary dos Santos - Um homem na cidade

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

domingo, 19 de outubro de 2008





A L A M E D A S





Ipê Roxo !
Tempo de Feira do Livro na Praça da Alfândega!

Recanto Oriental




Olavo Bilac - As Formigas





Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando ...
Marcham em filas cerradas;
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
E das pedras se desviam.
Entre os calhaus vão abrindo
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Acolá, galgando um muro.
Esta carrega a migalha;
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Outra, uma pata de inseto.
Carrega cada formiga
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.
Vede! enquanto negligentes
Estão as cigarras cantando,
Vão as formigas prudentes
Trabalhando e armazenando.
Também quando chega o frio,
E todo o fruto consome,
A formiga, que no estio
Trabalha, não sofre fome ...
Recorde-vos todo o dia
Das lições da Natureza:
O trabalho e a economia
São as bases da riqueza

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Bertolt Brecht - Aos que vierem depois de nós



Realmente, vivemos tempos muito sombrios!
A inocência é loucura.

Uma fonte sem rugas denota insensibilidade.

Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes,
em que é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!

Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo.

Mas evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo.

Realmente, vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia.

Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, - espero.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas.

E a meta achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes, desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz.

Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


tradução de Manuel Bandeira

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

António Lobo Antunes - Eu em agosto

O mês de agosto passado em casa, a escrever, almoçando e jantando nos restaurantezitos em torno. Sinto-me bem nestes sítios modestos, de ementa escrita a lápis, onde me fazem a conta na toalha de papel e me tratam por senhor António, com o respeito devido ao melhor escritor da rua. Conheço os sem-abrigo, as prostitutas, os travestis, os homens que comem sozinhos

(tantos homens que comem sozinhos, a começar por mim)

e de quem, a pouco e pouco, vou decifrando a vida: retratos de filhos puxados da carteira, doenças, viuvezes. Mostram-me análises, queixam-se da tensão, sabem mais de mim do que eu pensava: sou a celebridade do bairro, até nas lojas de paquistaneses, que me servem de supermercado, me topam. E perdoam-me se por distracção não respondo a um cumprimento

– Está sempre a olhar para dentro, o senhor António

eu que julgava olhar para fora, na minha qualidade de gatuno, porque tenho levado os anos a roubar caras, gestos, palavras, coisas de que não dou conta e me aparecem depois. Um templo adventista aqui perto, onde no domingo passado um casamento de africanos. Dúzias deles. E uma alemã de penteado esquisitíssimo, a pedir esmola nos semáforos com um saco de plástico em cada mão. Pensõezinhas manhosas para encontros rápidos. Consultórios de dentistas a dar com um pau, sei lá porquê. Automóveis antigos. Lustres barrocos, à noite, para além das janelas abertas. O correio deixa-me as encomendas na mercearia ao lado, com o retrato da neta na prateleira do fundo. Parece que voltei à minha infância, a Benfica, a Nelas. Não me lembro se era feliz nessa época. Se calhar era. Esqueci. Quer dizer não esqueci as casas nem as travessas: esqueci-me a mim, ou era outro então. Toda a gente viva nesse tempo. Tardes mais que compridas, infinitas, relógios preguiçosos. Hoje nem mastigam as horas, engolem-nas e o senhor António perde-se nas datas embora as ponha no alto das páginas em que faz o livro. Que livro estás a escrever, senhor António? Não sei. Mesmo depois de acabados não sei. E ainda que soubesse, de livros não falo. Tantos prémios, tanto reconhecimento, tanta medalha, tanta tradução. Não sou velho mas pergunto-me se a unanimidade respeitosa não fará parte das doenças da velhice, a mais grave de todas. Se alguém diz mal de mim, alegra-me: ainda não apodreci, que bom.

Estranho agosto este na casa que o vazio aumenta e as férias da empregada vão embaciando de pó. Roupa que nunca mais acaba à espera dela no cesto. A mudez do telefone de que quase ninguém tem o número e eu nem triste nem contente, a visitar-me de manhã no espelho na altura da barba. Lá está o sujeito dos livros que não se diz bom dia, vai aparecendo à medida que rapa o creme. Em criança, quando me davam a sopa, fixava-me no prato à espera da rã que saltava um muro, impressa no fundo. A partir de não sei quantas colheres ia surgindo a pouco e pouco, colorida, feliz, de suspensórios e calções

– Não quero mais, já se vê a rã

e insistiam

– Só esta

a mentirem-me porque o esta eram várias. Até rapavam a loiça

– É a última, a sério

e ao deslaçarem o babete da nuca magoavam-me sempre. Sopa de couves, sopa de feijão, sopa de ervilhas, a quantidade de sopas que me obrigaram a empanzinar, meu Deus. E bife raspado. E puré. E xarope no fim, de frascos de rótulo peganhento, tanto xarope que cá canta também. Bananas cortadas às rodelas e esmagadas com o garfo

– Quem quer crescer come bananas

e embora crescer não me dissesse grande coisa comia. Apesar de não se achar à frente na lista dos meus sonhos a ideia de ter óculos e tosse não me desagradava. E deitar-me às horas que queria, ler o jornal, botar opiniões. Usar anel isso sim, o que eu desejei usar um anel. E, já agora, um braço em gesso. Uma perna então nem se fala, com canadianas e tudo, coxear com majestade no corredor. Os meus pais a falarem francês ou inglês para a gente não perceber, e eu tentando decifrar aqueles mistérios que permanecem. Há qualquer coisa nos adultos que continua a escapar-me. Certos olhares. Certas frases. Os suspiros desalentados de uma tia solteira. Conseguir argolinhas de fumo: nunca aprendi. O meu avô calado: não me recordo de nenhum contentamento nele, recordo-me que lia na varanda para a vinha e é tudo. O vento nos castanheiros à noite. Um senhor que anunciava ao ir-se embora

– Eu vou-me chegando

e o mês de agosto passado em casa, a escrever. Se eu conseguisse exprimir, sem ser nos livros, tudo o que tenho dentro, que mundo em chamas não seria, que nortada. Coisas tranquilas também, pequenas doçuras, dedos lentos pelas costas acima. Este inexplicável sentimento de eternidade, a rã do fundo que não aparecerá nunca. Duro cinco minutos: sou eterno. Duro vinte anos: sou eterno. Olha o senhor António que não acaba. A cabeça na lua e o corpo junto a nós, até que a cabeça se aproxima, os olhos, o nariz, a boca, vai baixando, baixando, e começa a sorrir. Está no fim desta crónica. Uma ou duas frases e pronto. Depois lanchar uma torrada no cafezinho em frente e tornar a escrever. Imenso sol lá fora, um par de gatos pequeninos, ainda sem medo, espantados. Não têm nome, não têm passado, a mãe inventou-os há dias. Não pertencem seja a quem for, são deles mesmos. Despeço-me de vocês. Ou seja

– Vou-me chegando

e desço as escadas, volto-me a acenar e desapareço no bairro para sempre. Há quantos anos não me ouviam assobiar uma cantiga qualquer, há quantos anos me não viam dar uma pirueta na rua, ou seja bater os calcanhares um no outro a meio de um saltinho? Não vale a pena correrem à esquina a procurar-me: não estou lá.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Iara Vieira - Essas Mulheres

O que une as Teresas,
além de Ávilas e Calcutá,
não é só a fé
e a paixão
mas o acordo feito
antes do nome

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Alberto Caeiro - Quando viera a primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Mário Quintana - Canção de Outono





O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...
Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo...
Partir, ó alma, que dizes?
Colhe as horas, em suma...
mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte alguma!

Pelotas