domingo, 9 de junho de 2013

 
 
O mar é o habilidoso desenhador de ausências. 
 
Mia Couto

Passam os carros - Sophia de Mello Breyner Andresen



Passam os carros e fazem tremer a casa
A casa em que estou só.
As coisas há muito já foram vividas:
Há no ar espaços extintos
A forma gravada em vazio
Das vozes e dos gestos que outrora aqui estavam.
E as minhas mãos não podem prender nada.

Porém eu olho para a noite
E preciso de cada folha.

Rola, gira no ar a tua vida,
Longe de mim...
Mesmo para sofrer este tormento de não ser
Preciso de estar só.

Antes a solidão de eternas partidas
De planos e perguntas,
De combates com o inextinguível
Peso de mortes e lamentações
Antes a solidão porque é completa.

Creio na nudez da minha vida
Tudo quanto nela acontece é dispensável.
Só tenho o sentimento suspenso de tudo
Com a eternidade a boiar sobre as montanhas.

Jardim, jardim perdido
Os nossos membros cercando a tua ausência...
As folhas dizem uma à outra o teu segredo,
E o meu amor é oculto como o medo.

Sophia de Mello Breyner Andresen




Era preciso agradecer às flores
 
Terem guardado em si,

 
Límpida e pura,

 
Aquela promessa antiga

 
Duma manhã futura.